sexta-feira, 1 de junho de 2007

Amnésia

João acordou cedo e ficou deitado, pensando na vida. Pensava em muitas coisas que gostaria de fazer: ir à praia, viajar, tomar um café expresso com chantili, andar a cavalo... Só saiu da sua letargia quando a mulher lhe perguntou se por acaso não iria trabalhar naquele dia. João levou um susto, olhou para aquela mulher ao seu lado e se perguntou o que ela fazia ali. Em todo caso, algo lhe indicava que deveria fazer o que ela dizia, e então levantou, tomou um banho, trocou de roupa e foi trabalhar.
Pegou um ônibus e cada lugar por onde passava parecia novo. Em determinado momento, ele desceu e ficou um tempo parado, esperando decidir para onde ia. Naquela estranheza, seguiu seu instinto, caminhou uma quadra e meia e entrou em um prédio. Nos corredores, quando cruzava com alguém, recebia um "bom dia" que retornava com simpatia, embora em nenhum momento pudesse saber quem eram aquelas pessoas. Foi até uma sala e ocupou uma mesa com um computador.
Naquele dia, João ficou o tempo todo sentado na frente daquele computador e não fez nada. Às vezes acessava o menu de programas e iniciava alguma coisa, para ver se sabia o que fazer. Na verdade era isso, João não sabia o que tinha que fazer. Olhava em volta e achava tudo e todos estranhos. Começou a pensar que estava com algum problema. Pensou em perguntar para o chefe o que tinha que fazer, mas a verdade era que ele não sabia quem era o chefe, ou se ao menos tinha um. Esperou o dia todo que alguém lhe cobrasse algo, mas ninguém falou com ele, e nem sequer recebeu um telefonema.
A única vez que lhe dirigiram a palavra foi já no final da tarde, quando uma das pessoas que dividiam a sala com ele perguntou se ele iria ficar até mais tarde. João respondeu que não, e aproveitou que essa última pessoa estava saindo e saiu também.
Na rua, tudo parecia estranho, e João não sabia para onde deveria ir. Se deu conta então de que tudo na sua vida não existia mais, e não existia porque ele tinha esquecido. Pensou que talvez tivesse um celular e procurou nos bolsos. De fato tinha, e por um momento lhe pareceu plausível ligar e pedir ajuda para alguém. No entanto, não sabia quem eram aquelas pessoas cujo nome estavam na sua agenda, e foi aí que viu que seu telefone só serviria para alguma coisa se alguém ligasse.
Veio a noite e João não recebeu nenhuma ligação também. Resolveu ficar ali, na frente daquele lugar onde tinha passado o dia sem saber porquê, pois talvez pela manhã se desse conta de que tudo era um sonho, ou alguém poderia chegar e lhe perguntar o que estava acontecendo e quebrar esse estranho encantamento que estava vivendo. Pegou no sono e quando acordou já era dia de novo. Só que agora João não sabia mais quem era, embora tivesse consciência de que estava no mundo. João passou o dia todo no mesmo lugar, e ninguém lhe perguntou o que fazia ali, sentado na calçada, e ninguém ligou para aquele celular que ele tinha. Pensou que podia ligar para alguém, mas achou difícil porque não saberia dizer quem era nem o que queria. Mais uma vez veio a noite e ninguém lhe dirigiu uma palavra sequer. Então ele constatou que estava sozinho, e que na verdade não estava esquecendo de tudo. João não estava esquecendo de nada. Só que o mundo, de repente, esqueceu que João existia. Percebendo isso, ele se achou muito triste e teve vontade de chorar. E João tentou, se esforçou, mas não pôde lembrar como se chorava.